LOUUCOS!
- Tendência Inclusiva
- 31 de ago. de 2017
- 3 min de leitura
Minha mãe estava em frente de casa, varrendo os minúsculos confetes verde-escuros, que se multiplicam aos montes nesta época do ano. É culpa dos paisagistas, só pode. Quando recomendaram plantar mudas de Sibipiruna em toda Belo Horizonte, eles pensaram mais na sombra generosa, proporcionada por essa árvore de grande porte, do que no trabalho extra a ser criado a varredores de rua, empregados domésticos e donas de casa.
Mas, voltando à primeira linha do texto, minha mãe varria o passeio pela manhã, como costuma fazer dia sim, dia não, quando foi abordada por um homem desconhecido. Ele usava roupas e sapatos comuns e tinha aparência amigável, mas a encarou de viés, com um olhar que lhe pareceu fora do prumo. Vindo em sua direção, ele atravessou a rua e fez um leve afago nos cabelos louros dela. Depois disse, com voz mansa: “Parabéns. A senhora está cuidando direitinho do seu jardim”.
Em seguida, tão misteriosamente como apareceu, o estranho afastou-se do campo de visão. Não disse adeus e saiu sem revelar o próprio nome, assim como não havia pedido apresentações. “Fiquei assustada, sabe? Primeiro pensei que iria sofrer um assalto, mas não era. Depois, fiquei imaginando se conhecia o tal sujeito, mas tenho certeza de que não. Tampouco senti que estava sendo vítima de assédio, pois não era o caso. Acredito que ele seja um louco. Só pode ser”, concluiu.
Naquele dia, mamãe ligou para mim, apreensiva. Depois de ouvir o relato e ficar sabendo que o homem desconhecido não lhe fez mal, oferecendo a ela um carinho e um elogio ao jardim, imaginei que ela poderia estar exagerando nas cores e contornos da história. Não havia razão para temer (tornou-se um tanto difícil escrever esta palavra sem crítica, nos últimos tempos).
A hipótese mais provável é de que ela recebeu a visita inesperada de uma pessoa com sofrimento mental. Naquele dia, o ‘doido’ devia estar caminhando pelas ruas do bairro onde ela mora, no São Bento. Aliás, será cada vez mais ‘normal’ esbarrar aqui e ali com essas pessoas com transtornos mentais, finalmente libertos das antiquadas estruturas de hospícios e manicômios, encarcerados em condições subumanas como em Barbacena, por exemplo. Preconizado por Diego Basaglia na Itália, na década de 1970, o movimento da luta antimanicomial desbancou a ideia de que era necessário isolar os diferentes, longe dos olhos de uma sociedade tida como perfeita e higienizada.
Já era previsto que a loucura começaria a fazer parte do cotidiano. Em 2016, escrevi sobre o fechamento da última unidade psiquiátrica de internação a longo prazo da capital, que funcionava nas instalações do Hospital Sofia Feldman, no Bairro Padre Eustáquio. Em reportagem, publicada no jornal Estado de Minas, mostrei que os últimos pacientes crônicos da Clínica Serra Verde, antes condenados à prisão perpétua, estavam sendo transferidos para uma residência terapêutica, sob os cuidados de uma equipe especializada de psicólogos, assistentes sociais e afins.
Enfim, os loucos estão soltos... e aqui vai uma crítica ao movimento de desospitalização de BH, que ainda não conseguiu se mobilizar pela criação de equipamentos suficientes para absorver pacientes em surto, com acesso garantido a internações de menor prazo, se necessárias, intercaladas com sessões de terapia, oficinas de arte e dinâmicas de grupo.
Cada vez mais, vamos nos deparar com pessoas de olhar torto, querendo ser gauche na vida, aproximando-se de nós para entregar uma flor, oferecer um carinho e uma conversa amigável, algumas vezes sem pé nem cabeça. Então vamos estranhar o gesto infantil de aproximação, pois já estamos acostumados ao papel de individualistas radicais: andamos sempre correndo, quase nunca cumprimentamos vizinhos e colegas e abaixamos a cabeça para as telas dos celulares.
É como diz o ditado, que nos obriga a um mea culpa: “De louco e , todo mundo tem um pouco”. Para arrematar, reverberam n'alma os versos dos Mutantes, que nos fazem refletir e cantar: “Dizem que sou louco/Por pensar assim/Se eu sou muito louco/Por eu ser feliz/Mais louco é quem me diz/E não é feliz/Não é feliz”.


Sandra Kiefer é jornalista há 21 anos, recebeu prêmios importantes por redigir histórias nem sempre belas, mas que precisam ser contadas para ajudar a mudar o mundo, onde ela vive com o marido e dois filhos.
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