AQUARIUS
- Tendência Inclusiva
- 2 de ago. de 2017
- 3 min de leitura
Houve uma época em que os edifícios eram conhecidos pelo nome e, alguns deles, pelo sobrenome. É o caso do Maletta, localizado na Rua da Bahia, bem no miolo de Belo Horizonte. Centenas de pessoas entram e saem diariamente do Arcângelo Maletta, sem saber do nome completo, nem dos sebos de livros e discos, incluindo LP´s raros. Com o tempo, o condomínio foi reduzido a uma maleta, induzindo a erro os forasteiros, acostumados às malas de dinheiro do noticiário brasileiro da atualidade. Há outros prédios famosos na capital mineira, como o Acaiaca e o Codó, no entanto eu, nascida e criada na cidade, ainda não tinha me dado conta da existência de um Edifício Aquarius em nosso meio. Mais precisamente, no número 716 da Rua Zodíaco, localizada no Santa Lúcia, aliás no bairro onde moro.
Mas ainda não tinha colocado reparo, como se diz aqui nas terras de Minas, nesta edificação batizada igual ao Aquarius da Sonia Braga, citado no filme brasileiro homônimo. Na película, a atriz encarna ser a dona de um dos apartamentos no Aquarius, alvo de agressiva especulação imobiliária no Rio de Janeiro, aliás, exatamente como acontece no bairro. Aos poucos, casas aconchegantes e prédios pequenos, de três a cinco andares no Santa Lúcia, vão dando lugar a torres de salas comerciais e arranha-céus.
A chegada do progresso é inexorável, é verdade, mas no filme, a personagem principal é a única a se recusar a vender o apartamento, equivalente à caixinha de segredos da família dela. No papel, Sonia Braga demonstra a necessidade de se preservar o mínimo essencial, o âmago de cada imóvel (e também móvel, como veremos a seguir), com suas memórias e possibilidades. Para ela, nenhuma oferta milionária será capaz de comprar as lembranças contidas, por exemplo, na famosa cena da cômoda, onde os primeiros proprietários se apoiaram nela para encomendar seus descendentes, por assim dizer. Neste caso, a sequência de sexo explícito fez sentido.
Pouco a pouco, a protagonista vai revelando o valor sentimental de cada aresta do Aquarius, incluindo a vantagem de poder tomar um revigorante banho de mar, todas as tardes, apenas atravessando a rua. O filme atenta para a necessidade de se aceitar as condições impostas pelo capitalismo, especialmente em tempos de crise, mas só até certo ponto. Há um mínimo de dignidade, que vale a pena ser defendido. É fácil falar e escrever sobre isso aqui, mas o Aquarius é uma boa maneira de assistir, na telona, o que poderá acontecer se você ousar enfrentar o poderio das grandes construtoras.
Não sei se o Aquarius tocaria tão forte às pessoas quanto tocou a mim. Tentei saber, de algum morador do edifício de mesmo nome em BH, se por algum acaso haviam assistido ao filme. Decidi ir in loco ao Aquarius, que parecia estar abandonado como o seu similar na ficção, com as paredes descascadas e o design retrô. Toquei o interfone em todos os apartamentos e só fui atendida por uma secretária do lar, que realmente não compreendeu a proposta. Desisti de tentar no condomínio e apertei a campainha da casa em frente, sem sucesso. Já voltando para casa, segui o caminho até a Rua Kepler observando melhor os quarteirões do bairro, com seus nomes de planetas e constelações, como as ruas Via Láctea e Vega.
Perto do Edifício Solar, situado na Rua Netuno, abordei uma camionete de luxo, parada na saída de uma garagem. Quando a motorista desceu os vidros escuros, notei que ela usava óculos de sol de aros grandes e cabelos negros, que me sugestionaram a lembrar da Sonia Braga. Simpática, a engenheira L., de 49 anos, concordou em responder aos questionamentos em relação ao Aquarius do vizinho. Contou não ter visto o filme, mas tinha ouvido falar a respeito do tema. Disse também que respeita o trabalho da atriz brasileira, com quem não se acha parecida. “Ela é de uma beleza exótica e me parece ser bem antenada e corajosa. Saiu cedo do Brasil e foi morar no exterior, sozinha”, disse.
Em relação ao desapego aos imóveis ‘de família’, a moradora L. explicou que detestaria ver a própria casa transformada em um arranha-céu. Além do aspecto de preservar a memória afetiva do lugar, ela bem lembrou sobre a importância de se conservar os espaços verdes da cidade. “Fiz uma reforma recentemente e perdi parte da horta, mas já encomendei o projeto para construir um jardim vertical”, afirmou ela, ensinando ser possível encontrar soluções inteligentes para preencher espaços urbanos. Basta querer.


Sandra Kiefer é jornalista há 21 anos, recebeu prêmios importantes por redigir histórias nem sempre belas, mas que precisam ser contadas para ajudar a mudar o mundo, onde ela vive com o marido e dois filhos.
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